Há exatos 50 anos, no Rio de Janeiro, o presidente João Goulart apresentava para 200 mil pessoas o esqueleto das reformas de base, principal bandeira de governo. Ao falar abertamente sobre os planos para o país, Jango buscava apoio popular para pressionar o Congresso Nacional a aprovar as pautas de seu interesse. O pronunciamento, no entanto, teve como reação a Marcha da Família com Deus pela Liberdade seis dias depois, e acelerou a chegada de uma ditadura civil-militar ao Brasil que permaneceu por 21 anos.
“Parte alguma da sociedade ficou imune à politização que estava na pauta política dos dias que antecederam o golpe. Mas não entendo o comício como um ponto de radicalização, e sim um ponto de inflexão. Jango não repetiu nada que não tivesse dito nos anos anteriores de governo. Foi mais inflamado; a gente vê que a pauta política saltava pelos poros de todo mundo que estava ali”, analisa Nashla Dahás, pesquisadora da Revista de História da Biblioteca Nacional.
“Era um mundo diferente, com uma polarização clara”, lembra Milton Temer. À época com 25 anos, o ex-deputado federal (1995-2002) diz que seguiu para a Central do Brasil muito mais movido pela emoção do que pela razão. “O comício foi um ato importantíssimo de massa. Eu estava lá, foi emocionante, aquela marcha na rua... era tudo ou nada. A utopia era algo que batia à porta”, recorda.
A multidão que aplaudia o presidente, convocada por sindicatos e entidades estudantis, estava cercada por três mil soldados, estrategicamente posicionados ao redor da Central do Brasil e do Ministério da Guerra, onde acontecia o comício. “Os militares assistem a tudo aquilo, acompanham… Há inclusive uma suspeita de bomba, mas eles dizem que o comício pode acontecer com tranquilidade. Depois, eles poderiam agir”, conta Nashla. “O fato de ele (Jango) estar próximo ao ministério pode ser entendido como um enfrentamento político. Ele sabia que estava ao lado daqueles contra quem poderia se confrontar.”
Briga antiga
O discurso de 13 de março é apenas um dos capítulos finais de uma longa oposição dos militares a Goulart, iniciada quando este ainda era ministro do Trabalho do também gaúcho Getúlio Vargas. Em 1954, ao prometer um reajuste de 100% no salário mínimo, Jango teve como resposta o Manifesto dos Coronéis. O texto reclamava do aumento da inflação e do desprestígio às Forças Armadas, com salários defasados, o que poderia incentivar a ação comunista. Em 1961, quando o então presidente Jânio Quadros renunciou ao mandato, após somente sete meses no cargo, os militares impediram a posse do vice, Jango, instaurando o parlamentarismo no Brasil — só revertido em 1963, por plebiscito. Com a ampliação dos poderes do presidente, no entanto, cresceu o discurso anticomunista, que adivinhava inclusive a aproximação de um golpe vermelho no país.
“Não existia nem a possibilidade concreta de um golpe (comunista), ou de uma república sindicalista — que eram dois focos da propaganda anticomunista. Isso só fazia sentido na cabeça dos conservadores, militares e setores da imprensa, em função do clima de guerra fria”, explica Adriano Codato, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Para ele, “o discurso na Central irritou a sensibilidade social anticomunista. Mas o discurso no Clube dos Sargentos (em 30 de março) foi o que catalisou a revolta militar. O comício mostrou a disposição do governo para fazer as reformas de base, mas defender que sargentos deveriam participar da política foi fundamental para que os militares acreditassem que estava em cheque a hierarquia, a disciplina.”
O efeito das palavras
Veja os principais pontos da fala do presidente João Goulart: o discurso fez transbordar a ira de setores conservadores e acelerou a derrubada do presidente.
Reforma Agrária
- Decreto assinado naquele dia considerava como passíveis de desapropriação as terras às margens de rodovias, ferrovias, açudes públicos federais e terras beneficiadas por obras de saneamento da União. “Ainda não é a carta de alforria do camponês abandonado”, disse Jango, prometendo avançar em uma das principais bandeiras de governo.
Estatização de refinarias
- Jango anunciou a “encampação” das refinarias de petróleo privadas. “A partir deste instante, as refinarias (...) passam a pertencer ao povo, passam a pertencer ao patrimônio nacional.” Poucos dias depois, o presidente mirava a estatização das companhias aéreas, quando foi deposto.
Tabelamento dos aluguéis
- “Dentro de poucas horas, outro decreto será dado ao conhecimento da Nação. É o que vai regulamentar o preço extorsivo dos apartamentos e residências desocupados.” A subida dos preços de locação de imóveis pressionava a inflação. Como solução, o governo pretendia atrelar o aumento dos aluguéis ao reajuste do salário mínimo.
Reforma eleitoral
- “O governo (...) reafirma os seus propósitos inabaláveis de lutar (...) não apenas pela reforma agrária, mas pela reforma tributária, pela reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros.” Jango presta apoio ao pleito de setores militares, que pedia o fim da proibição de integrantes das Forças Armadas disputarem cargos eletivos.
Golpe
- Ao afirmar que “presta conta ao povo dos seus problemas"” Jango diz que luta contra “forças poderosas”. “É apenas de lamentar que parcelas ainda ponderáveis que tiveram acesso à instrução superior continuem insensíveis, de olhos e ouvidos fechados à realidade nacional. (...) Poderão (...) ser os responsáveis perante a história pelo sangue brasileiro que possa vir a ser derramado.”
Na luta pelas mesmas causas
- Apesar dos 50 anos que distanciam o comício dos nossos dias, ainda precisamos reformar as estruturas do Estado brasileiro: social, política e economicamente”, enumera João Vicente Goulart. O filho do presidente deposto em 1964 participa hoje, no Rio de Janeiro, de uma homenagem ao Comício da Central. O evento é convocado por dezenas de movimentos sindicais, políticos e estudantis, e além de um ato às 18h, inclui uma série de debates sobre a ditadura militar. Na outra ponta do espectro político, também está marcada uma comemoração às cinco décadas da Marcha da Família com Deus pela Liberdade — movimento que, em 1964, rebateu a mobilização empreendida pelo presidente João Goulart.
“Muitos falam que, com base no que está sendo feito hoje no país, eles (militares) poderiam intervir sem o povo clamar. Mas não é bem assim. Senão, é dado como golpe militar, como dizem que foi em 1964”, explica Cristina Peviani, 51 anos, organizadora da reedição da Marcha da Família em São Paulo. “Pedimos a intervenção constitucional pelos militares. Não posso pedir isso para os políticos fichas suja que estão aí. Seria absurdo”, argumenta.
A manifestação, marcada para o dia 22, percorrerá o mesmo trajeto de 19 de março de 1964, quando meio milhão de pessoas marcharam contra o comunismo, convocadas principalmente pelo então governadore de São Paulo, Adhemar de Barros. “É uma marcha que não tem nada a ver com liberdades. Isso é um retrocesso político, é uma direita que quer retroceder o nosso Brasil”, critica Indalécio Wanderley, diretor da Central Única dos Trabalhadores no Rio de Janeiro.
Fonte: Correio Braziliense
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